segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Algumas Concepções de Pais e Professores sobre a Inclusão Escolar de Crianças com Deficiências Múltiplas


A Declaração Mundial sobre Educação para Todos (Unesco, 1990), aprovada pela Conferência Mundial sobre Educação para Todos, realizada em Jomtiem – Tailândia, no ano de 1990, e a Declaração de Salamanca (Unesco, 1994), firmada na Espanha em 1994, marcam, no plano internacional, momentos históricos em prol da Educação Inclusiva. No Brasil, a Constituição Federal de 1988, art. 208, inciso III (Brasil, 1988), o Plano Decenal de Educação para todos, 1993 – 2003 (MEC, 1993) e os Parâmetros Curriculares Nacionais (MEC, 1999) são exemplos de documentos que defendem e asseguram o direito de todos à educação. Segundo esses documentos, todas as crianças devem ser acolhidas pela escola, independente de suas condições físicas, intelectuais, sociais, emocionais.

A inclusão escolar da pessoa com necessidades educacionais especiais (NEE) é um tema de grande relevância e vem ganhando espaço cada vez maior em debates e discussões que explicitam a necessidade de a escola atender às diferenças intrínsecas à condição humana. Assim, a inclusão escolar do deficiente múltiplo – pessoas com duas ou mais deficiências de base associada – que, na maioria das vezes, é percebido como o educando com necessidades educacionais “mais acentuadas”, é fato bastante recente na educação brasileira (MEC, 2002). Nos questionamentos sobre a possibilidade de inclusão escolar dessa população, ainda habitam no imaginário social e individual dos profissionais da educação e dos familiares dessas crianças, desconhecimento e dúvidas que culminam em incertezas sobre os benefícios e as possibilidades da inclusão. É consenso que a pessoa com necessidades educacionais especiais se beneficia das interações sociais e da cultura na qual está inserida, sendo que essas interações, se desenvolvidas
de maneira adequada, serão propulsoras de mediações e conflitos necessários ao desenvolvimento pleno do indivíduo e à construção dos processos mentais superiores (Vygotsky, 1987). Para Vygotsky, a transformação dos processos mentais elementares em funções superiores ocorre por meio das atividades mediadas e por meio das ferramentas psicológicas, o que implica, para esse autor, que a formação da subjetividade individual decorre do relacionamento com os outros (Gindis, 1995).

As proposições de Vygotsky (1993) na área da Defectologia conduziram o autor a propor que o desenvolvimento de uma criança deficiente representa, sempre, um processo criativo e que essa criança apresenta meios particulares de processar o mundo. A abordagem de Vygotsky incorpora a noção de compensação e, de acordo com o autor, no contato do indivíduo deficiente com o mundo externo surgem conflitos, e a resolução desses conflitos pode propiciar a emergência de soluções alternativas, que se constituem em formas qualitativamente diferentes das funções psicológicas superiores. Desta maneira, Vygotsky assume uma posição que privilegia a importância dada à aprendizagem escolar como promotora do desenvolvimento e que reconhece o papel desempenhado pelo professor como mediador no processo de aquisição de conhecimento, na formação de conceitos científicos e no desenvolvimento cognitivo de seus alunos.

Desta forma, ao compreender o desenvolvimento como um processo qualitativamente diferente para cada indivíduo, no qual os obstáculos podem ser contornados por meio de processos compensatórios, sendo a mediação fundamental para a obtenção de bons resultados, as proposições de Vygotsky sobre o desenvolvimento anormal oferecem uma visão da deficiência como uma anormalidade social e as diferenças no desenvolvimento passam a ser vistas como variações qualitativas.

Páez (2001) descreve que a inclusão pode trazer benefícios incontestáveis para o desenvolvimento da pessoa com deficiências, desde que seja oferecido na escola regular, necessariamente, uma Educação Especial que, em um sentido mais amplo, “significa educar, sustentar, acompanhar, deixar marcas, orientar, conduzir” (p. 33).
Portanto, a inclusão escolar pressupõe mudanças físicas relacionadas a posturas frente às concepções que co-habitam na escola, sendo que um dos embates de maior significância é o que se refere à formação de professores em níveis teóricos, práticos e pessoais, que, na maioria das vezes, se mostra bastante insólita para edificar práticas que realmente estimulem a autonomia, a criatividade e a ampliação das competências do aluno com deficiência múltipla.
Para Esteban (1989), “a concepção que o professor tem de mundo e de homem tem relação com sua concepção sobre o processo de alfabetização, assim como a leitura que faz do desenvolvimento da criança tem relação com a qualidade da sua intervenção” (p. 77).

Também se revestem de grande importância as concepções e expectativas dos familiares em relação à pessoa com necessidades educacionais especiais. Para Jerusalinsky e Paez (2001), as concepções e expectativas familiares proporcionarão um arsenal simbólico que muito dirá sobre como essa criança deverá ser incluída no ambiente social. No entanto, para que essa inclusão aconteça de maneira efetiva, é preciso mostrar à criança as representações e os traços privilegiados pelo discurso social para possibilitar que ela possa vir a representar-se nesse discurso.

Estudos que abordam as relações familiares de crianças com problemas no desenvolvimento apontam um alto nível de estresse nos pais, em especial nas mães, de crianças com deficiências e uma maior tendência desses pais em desenvolverem
depressão (Glidden & Floyd; Negrin & Cristante, citados por Dessen & Silva, 2000).

Por se reconhecer a importância da escola e da família no desenvolvimento das crianças com deficiência múltipla, justifica-se a relevância do presente trabalho. As concepções das pessoas envolvidas no cotidiano dos deficientes múltiplos nos permitem entender a natureza e a qualidade de suas intervenções, considerando que as ações são orientadas pelas concepções historicamente construídas (Oliveira, 1999).
Destes pressupostos decorre, a formulação desse estudo que teve como objetivo geral investigar as concepções dos pais e dos professores de crianças com deficiência múltipla sobre a inclusão escolar e social dessas crianças.

Concepções de pais e professores: semelhanças e diferenças

As concepções dos pais e as dos professores sobre a inclusão escolar e social e, também, sobre as possibilidades de desenvolvimento e aprendizagem dos alunos com deficiências múltiplas, apesar de suas especificidades, apresentaram-se, em sua grande maioria, convergentes.

Sobre a inclusão escolar – Pais e professores concordam em relação à impossibilidade de se realizar a inclusão escolar do deficiente múltiplo, principalmente por acreditarem que suas dificuldades, as da escola de ensino regular e as das crianças que dela fazem parte, inviabilizariam o processo
de inclusão escolar.

Sobre inclusão social – Ambos acreditam na importância das interações sociais para o desenvolvimento do deficiente múltiplo e, inclusive, percebem a inclusão social como a única viável, pois não acreditam na possibilidade de inclusão escolar dessas crianças.

Sobre o desenvolvimento dos deficientes múltiplos – As concepções dos pais e as dos professores deste estudo parecem convergir, quando se trata das características do desenvolvimento do deficiente múltiplo. A deficiência, principalmente para os professores, tem caráter estritamente biológico e, portanto, diante das dificuldades, esses alunos estariam fadados a se desenvolver de maneira lenta e imperceptível.

Sobre as possibilidades de aprendizagem – Pais e professores reconhecem alguns progressos alcançados pela criança, principalmente aqueles relacionados à autonomia em atividades práticas cotidianas e a socialização, porém, embasados em concepções idealizadas, centram-se nas limitações das crianças.

Percepções e sentimentos frente à deficiência – Os pais e os professores se relacionam com a deficiência das crianças de modo estanque. Antecipam resultados de fracassos e de decepções. No entanto, os pais mostraram perspectivas futuras mais positivas e mais esperançosas que os professores.

Considerações Finais

As concepções dos pais e as dos professores problematizam a dificuldade da inclusão escolar dos deficientes múltiplos, principalmente no que se refere a dificuldades de esses alunos acompanharem os conteúdos ministrados na sala de ensino regular.

De acordo com alguns estudos sobre essa temática, o olhar inclusivo sobre as escolas especiais ou regulares, deve ser um olhar de mudanças e inquietações, que vem assinalar a necessidade de transformações no sistema educacional, no sentido de considerar as pessoas, suas histórias, concepções, percepções, crenças, experiências e trajetórias pessoais. Tanto os pais, que em sua maioria advêm de um nível sócio-econômico desfavorecido extremamente desrespeitados em seus direitos, quanto os professores, apresentam, por vezes, em seus discursos, um severo descrédito no desenvolvimento e na aprendizagem dos deficientes múltiplos. Neste sentido, a formação profissional passa a ser uma questão central para a implantação da escola inclusiva. Acima de tudo, a predisposição para perceber o aluno com ser cognocente  e se perceber como peça-importante no desenvolvimento do aluno, de forma a co-responsabilizar-se pelas mudanças que urgem serem realizadas no processo educacional, se traduz como uma questão urgente a ser enfrentada no trabalho com os professores.

Portanto, garantir um espaço de informação/formação/ redefinição poderia colaborar no sentido de promover debates sobre os fatores referentes às baixas expectativas dos pais e professores em relação ao desenvolvimento e à aprendizagem dos deficientes múltiplos, articulando-os para cobrarem de todo o sistema educacional posturas e práticas de qualidade.

A escola, portanto, deve estar aberta, em todo momento, à participação dos pais dessas crianças, inclusive no que se refere à presença em determinadas aulas, para que esteja claro, para os pais, a seriedade da proposta pedagógica específica para seu filho, bem como para que se possa instrumentalizar os pais para atividades possíveis de serem realizadas em casa.

Tratando-se das políticas públicas, a partir de certos discursos de pais e professores, a respeito das situações em que experienciaram o desrespeito aos seus direitos, evidenciou-se a necessidade de realização de políticas públicas, destinadas à população em geral, a respeito da necessidade de todos terem ações de tolerância à diversidade humana. Sabe-se, que as ações dos profissionais que lidam com o público é, também, função de políticas internas das instituições. Ainda com relação às políticas públicas, elas hão que propiciar maior investimento em materiais pedagógicos, próteses e órteses e recursos de adaptação para as escolas inclusivas, a fim de se garantir meios que facilitem a acomodação, comunicação e aprendizagem dos alunos com
necessidades educacionais especiais, assim como se deve questionar a eficácia dos treinamentos e cursos destinados aos professores que lidam com esses alunos.

Desta forma, a inclusão remete à urgência da transformação de toda a realidade social e escolar. À escola, preconizam-se as mudanças relacionadas ao acolhimento do sujeito como ser em constante construção e desenvolvimento. Diante disso, conhecimento deve, outrossim, ser percebido não como algo determinado e acabado, mas como o produto da co-construção gerado pela interação entre o indivíduo, o meio físico e as relações humanas. Portanto, isso significa a reflexão sobre as concepções que permeiam as construções cognitivas de pais, de professores e de todos os agentes da escola, que culminem em práticas em que a prioridade seja dada à mediação do outro, em se tratando da disponibilização dos bens culturais à participação do deficiente múltiplo.
Referências
Bardin, L. (1977). Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70.
Bassedas, E.; Huguet, T.; Marrodán, M.; Oliván, M.; Planas, M.;
Rossell, M.; Seguer, M. & Vilella, M. (1996). Intervenção educativa e diagnóstico psicopedagógico. (B. A., Neves, Trad.).Porto Alegre: Artes Médicas. (Trabalho original publicado em 1993).
Bauer, W. M. (2002). Análise de conteúdo clássica: uma revisão. Em M. W. Bauer & G. Gaskell (Orgs), Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som – um manual prático (pp. 189-217, A. P. Guareschi, Trad). Petrópolis: Vozes. (Trabalho original publicado em 2000).
Berg, B. L. (1998). Qualitative research methods for the social sciences. Boston: Allyn and Bacon.
BRASIL.(1988). Constituição da República Federativa do Brasil. São Paulo: Encyclopaedia Britannica do Brasil.
Caixeta, J. E. (2001). A mulher em envelhecimento no seu cotidiano: diálogos, textos e imagens sobre a identidade feminina.
Dissertação de Mestrado, Universidade de Brasília, Brasília. Carvalho, R. E. (2001). A incorporação das tecnologias na educação especial para a construção do conhecimento. Em S. Silva & M. Vizim (Orgs.), Educação especial: múltiplas leituras e diferentes significados (pp. 57-84). Campinas: Mercado de Letras: Associação de Leitura do Brasil-ALB.
Dessen, M. A. & Silva, N. L. P. (2000). Deficiência mental e família: uma análise da produção científica. Paidéia – Cadernos de Psicologia e Educação. 10(19), 12-23.
Esteban, M. T. (1989). Repensando o fracasso escolar. Caderno de Pesquisa – CEDES. 28, 73-86.
Gindis, B. (1995). The social/cultural implication of disability: Vygotsky’s paradigm for special education. Educational Psychologist, 30(2), 77-81.
Jerusalinsky, N. A. & Páez, S. M. C. (2001). Carta aberta aos pais acerca da escolarização das crianças com problemas de desenvolvimento. Escritos da criança, 6, 15-21.
Kassar, M. C. M. (1999). Deficiência múltipla e educação no Brasil-discurso e silêncio na história dos sujeitos. Campinas: Autores Associados.
Kruppa, S. M. P. (2001). As linguagens da cidadania. Em S. Silva, & M. Vizim (Orgs.), Educação especial: múltiplas leituras e diferentes significados (pp. 13-39). Campinas: Mercado de Letras: Associação de Leitura do Brasil-ALB.
Miller, N. B. (2002). Ninguém é perfeito (3a ed.). Campinas: Papirus.
Ministério da Educação e Cultura (1993). Plano Decenal de Educação para Todos 1993 a 2003. Brasília: MEC.
Ministério da Educação e Cultura. (1999). Parâmetros Curriculares Nacionais-Adaptações Curriculares, Estratégias para a Educação de Alunos com necessidades Educacionais Especiais.
Brasília: MEC/SEE. Ministério da Educação e Cultura (2002). Estratégias e orientações pedagógicas para a educação de crianças com necessidades
educacionais especiais-Dificuldades acentuadas de aprendizagem. Deficiência múltipla. Brasília: MEC/SEE.
Oliveira, S. M. (1999). Valores e crenças de educadoras de creche sobre o desenvolvimento e educação de crianças de dois e três anos. Dissertação de Mestrado, Universidade de Brasília,Brasília.
Páez, S. M. C. (2001). A integração em processo: da exclusão à inclusão. Escritos da criança, 6, 29-39.
Penn, G. (2002). Análise semiótica de imagens paradas. Em M. W. Bauer & G. Gaskell (Orgs), Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som – Um manual prático (pp. 319 342, A. P, Guareschi, Trad). Petrópolis: Vozes.
Silva, S. (2001). Educação especial – entre a técnica pedagógica e a política educacional. Em S. Silva & M. Vizim (Orgs), Educação especial: múltiplas leituras e diferentes significados (pp. 179-171). Campinas: Mercado de Letras: Associação de Leitura do Brasil-ALB.
Unesco (1990). Declaração Mundial sobre Educação para Todos: Satisfação das Necessidades Básicas de Aprendizagem.
Unesco (1994). Declaração de Salamanca e Linhas de Ação sobre Necessidades Educativas Especiais. Brasília: Corde.
Vygotsky, L. S (1987). Pensamento e linguagem. (J. L. Camargo, Trad.). São Paulo: Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1962)
Vygotsky, L. S. (1993). The fundamentals of defectology. Em R. W. Rieber & A. S. Carton (Orgs.). The collected works of L.
S. Vygotsky. vol. 2 (pp. 1-25). New York and London: Plenum Press. (Trabalho original publicado em 1925).

Nenhum comentário:

Postar um comentário